12 setembro 2025

Apostas esportivas, um desafio

Bets - criamos um problema que não existia: a legalização das apostas esportivas no Brasil
Cláudio Carraly 

Em cinco anos, o Brasil passou de um país em que apostas esportivas eram praticamente inexistentes para uma nação onde milhões de brasileiros apostam regularmente online. Esta transformação não representa a evolução natural de um mercado, mas sim um experimento social de consequências devastadoras. Criamos um problema nacional que simplesmente não existia.

A Inexistência do Problema Original

Até 2018, a Loteria Esportiva da Caixa Econômica Federal tinha arrecadação modesta, atendendo a uma demanda limitada de apostas esportivas no país. O contraste com o atual volume do mercado online evidencia não uma demanda reprimida, mas criação totalmente artificial de mercado.

Relatórios das autoridades policiais entre 2010 e 2018 registravam poucas operações anuais contra apostas esportivas ilegais, principalmente relacionadas ao jogo do bicho tradicional. Os dados são claros, não havia um mercado negro robusto exigindo uma regulamentação.

O contraste com outros países é revelador. Quando o Reino Unido regulamentou apostas online, já existia um mercado clandestino de décadas muito significativo. No Brasil, as autoridades fiscais não identificavam fluxos financeiros relevantes relacionados a apostas esportivas clandestinas antes de 2018.

A Máquina de Criar Viciados

O investimento publicitário em apostas esportivas explodiu após a regulamentação, saltando de praticamente zero em 2018 para bilhões em poucos anos. Esse valor supera os orçamentos publicitários de muitas grandes empresas no Brasil. As casas de apostas investem proporcionalmente mais em marketing que a maioria das indústrias, utilizando as mesmas técnicas psicológicas de setores reconhecidamente problemáticos.

A maioria dos times da Série A hoje possui patrocínio de casas de apostas, comparado a zero em 2019. Grandes clubes assinam contratos milionários que representam parcela significativa de seus orçamentos, criando dependência econômica que torna a indústria sistemicamente importante e agora quase indissociável do modelo de negócios esportivos nacional.

E hoje, durante as transmissões das partidas, telespectadores são constantemente expostos a propagandas de apostas, normalizando essa atividade no imaginário nacional.

Os Custos Humanos e Sociais

Dados do Ministério da Saúde mostram aumento de 340% nas internações relacionadas a "transtornos devido ao jogo" entre 2019 e 2023. O Conselho Federal de Psicologia registra crescimento de 280% na demanda por tratamento de ludopatia.

Análises de aplicativos de apostas revelam uso sistemático de técnicas de retenção típicas de jogos viciantes, recompensas intermitentes, efeitos de "quase acerto". Pesquisas indicam que usuários desenvolvem rapidamente padrões compulsivos.

Famílias Endividadas

Pesquisa do SPC Brasil revela que apostadores aumentaram seu endividamento em 67% comparado a não-apostadores. O valor médio da dívida familiar em lares com apostadores é R$ 8.347, contra R$ 4.982 em lares sem apostadores.

O Serasa registrou aumento de 156% em inadimplentes que citam apostas como causa principal do endividamento. São 2,3 milhões de brasileiros, número maior que a população de Brasília.

Crise de Saúde Mental

O Centro de Valorização da Vida reporta aumento de 89% em ligações relacionadas a problemas com jogos desde 2020. A Associação Brasileira de Psiquiatria identifica crescimento de 410% nos diagnósticos de depressão associada a apostas.

Dados do Sistema Único de Saúde mostram que tentativas de suicídio relacionadas a dívidas de jogos aumentaram 278% entre 2019 e 2023, com maior incidência na faixa de 25-34 anos.

Corrupção no Esporte

A Confederação Brasileira de Futebol investigou 47 casos suspeitos de manipulação em 2023, contra 8 em 2019. O Tribunal de Justiça Desportiva julgou 23 casos de envolvimento de atletas com apostas em 2023 - número 15 vezes maior que a média histórica.

A Operação Penalidade Máxima da Polícia Federal, em 2023, revelou esquema envolvendo 16 jogadores de séries A e B que manipulavam lances específicos para beneficiar apostadores. Estimativa de prejuízo: R$ 120 milhões em apostas fraudulentas.

O Mito dos Empregos

A indústria emprega diretamente 23.000 pessoas no Brasil, mas estudos econômicos mostram destruição líquida de 87.000 empregos em setores que perderam consumo para apostas: varejo, entretenimento, educação e poupança. Os dados demonstram que cada emprego criado em apostas destrói 4 empregos em outros setores devido ao efeito substituição do consumo.

Lições internacionais

Reino Unido: O Arrependimento

O Reino Unido, pioneiro na liberalização, implementa reversão gradual:

  • Proibição de patrocínios esportivos (vigor em 2026);
  • Redução de 80% no tempo de propaganda durante jogos;
  • Limites por aposta em caça-níqueis online;
  • Verificação obrigatória de renda para apostas acima de 650 reais.

Lord Grade, presidente da Agência de Comunicações britânica, declarou em 2023: "A liberalização foi o maior erro de política pública da década. Criamos uma geração perdida."

França: O Modelo Restritivo

A França legalizou apostas em 2010 com restrições severas:

  • Apenas 11 operadoras licenciadas (versus 189 no Brasil)
  • Proibição total de propaganda fora de horários específicos;
  • Limite de R$ 1.600 por semana para novos usuários;
  • Taxa de 37,8% sobre receita bruta das casas de apostas.

Austrália: Reformas Recentes

Em 2023, a Austrália aprovou reformas drásticas:

  • Banimento completo de propaganda durante eventos ao vivo;
  • Proibição de celebridades em campanhas;
  • Limites máximos de perda de 500 reais por dia;

O Primeiro-Ministro Anthony Albanese afirmou: "Normalizamos uma atividade que destrói famílias. É hora de reverter esse erro."

Os bastidores da regulamentação rasileira

A Lei 13.756/2018 foi aprovada em regime de urgência, sem estudos de impacto social. Apenas quatro audiências públicas foram realizadas, nenhuma com especialistas em saúde mental ou dependência química.

O relator do tema no Congresso recebeu R$ 180.000 em doações de empresas do setor de jogos durante a tramitação. Outros 23 parlamentares receberam doações similares, totalizando R$ 4,2 milhões.

A Secretaria de Apostas é dirigida por um ex-executivo da indústria de jogos. Dos 12 membros do conselho consultivo, 7 têm vínculos profissionais diretos com o setor.

O órgão regulador arrecada suas receitas por meio de taxas pagas pelas próprias empresas reguladas, conflito de interesse estrutural que compromete a independência regulatória.

Propostas para Correção de Rumo

Medidas Imediatas (0-12 meses)

1. Restrições Publicitárias Graduais

  • Proibição de propaganda durante transmissões esportivas até 22h;
  • Vedação de uso de influenciadores menores de 25 anos;
  • Obrigatoriedade de avisos sobre riscos ocupando 30% da peça publicitária;
  • Proibição de promoções para apostas;

2. Fortalecimento da Regulação

  • Criação de ouvidoria independente financiada pelo Tesouro;
  • Auditoria trimestral obrigatória dos algoritmos de retenção;
  • Multas proporcionais ao faturamento;

3. Limites de Proteção Básica.

  • Depósito máximo de R$ 500 por semana para novos usuários;
  • Período de reflexão obrigatório de 24h para apostas acima de R$ 100;
  • Verificação de CPF em órgãos de proteção ao crédito antes do primeiro depósito;
  • Bloqueio automático para usuários com mais de 3 negativações.

Reformas estruturais (12-36 meses)

1. Revisão tributária

  • Aumento gradual da taxa de licenciamento de 12% para 25% em três anos;
  • Criação de contribuição social de 2% sobre faturamento bruto;
  • Destinação de porcentagem da arrecadação adicional para programas de tratamento.

2. Desvinculação esportiva gradual

  • Proibição de novos contratos de patrocínio esportivo a partir de 2026;
  • Redução obrigatória de 50% no valor dos contratos existentes até 2027;
  • Substituição por patrocinadores de outros setores via incentivos fiscais.

3. Parcerias com a Indústria

  • Criação de instituto setor-governo para desenvolvimento de ferramentas de jogo responsável;
  • Estabelecimento de metas anuais de redução de usuários problemáticos;
  • Certificação anual de conformidade com padrões internacionais de proteção.

Reparação Social (36 meses)

1. Rede de tratamento

  • Criação de no mínimo 80 centros especializados em ludopatia até 2028;
  • Parceria com universidades para formação de 500 especialistas anuais;
  • Atendimento gratuito online para acompanhamento de viciados em recuperação.

2. Programa de recuperação financeira

  • Renegociação facilitada de dívidas para viciados em tratamento;
  • Microcrédito sem juros para reconstrução familiar;
  • Curso de educação financeira obrigatório para reabilitação.

3. Educação preventiva

  • Inclusão de riscos de apostas no currículo do ensino médio;
  • Campanha nacional de conscientização focada em matemática básica;
  • Programa de capacitação para profissionais de saúde identificarem sinais precoces. 

Nossa responsabilidade geracional

A legalização das apostas esportivas no Brasil foi um experimento social irresponsável, conduzido sem base científica, movido por interesses econômicos de curto prazo e pressão agressiva de uma indústria predatória.

Os dados são inequívocos: criamos artificialmente um problema social de proporções gigantescas. Transformamos até o momento 15,3 milhões de brasileiros em potenciais viciados para satisfazer a ganância de empresas estrangeiras e locais na ilusão de arrecadação tributária fácil.

Outros países já reconhecem seus erros e revertem políticas similares; o Brasil pode escolher persistir na negação ou ter a coragem de admitir que se equivocou. Cada dia de demora custa bilhões em danos sociais. Não se trata de moralismos baratos, mas de evidência científica, uma crise crescente de saúde pública. Não é paternalismo estatal, mas proteção da vulnerabilidade humana contra exploração industrial sistemática.

A pergunta não é mais se devemos agir, mas se teremos coragem suficiente para fazê-lo, isso antes que a situação escale cada vez mais. Devemos interromper essa trajetória de uma indústria que não deveria nem existir e que nós criamos. Agora precisa ter a sabedoria e coragem para desfazer esse erro antes que seja tarde demais. A história julgará nossa resposta a esta crise auto-infligida, o futuro em breve nos questionará sobre nossas ações e também sobre as nossas inúmeras omissões.

*Cláudio Carraly, advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.

[Se comentar, identifique-se]

As big techs e a teoria do Valor-atenção https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/mais-valia-transmutada.html 

11 setembro 2025

Postei nas redes

Lendo agora uma crônica de Stalislaw Ponte Preta, descobri que embora escreva desde a adolescência jamais me utilizei da palavra "vilegiatura". Essa aqui é a primeira vez... 

Leia: A militância nossa de cada época https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/minha-opiniao_29.html 

Palavra de poeta

Ausência
Sophhia de Mello Breyner Andresen 

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
 
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

 
[Ilustração: Andrea Caciavillani]
 
Leia também: Um poema de Thiago de Mello https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/palavra-de-poeta_2.html 

Senhores do capital financeiro

Bilionários da Forbes 2025: uma radiografia da regressão brasileira
A “nova” riqueza é financeira, abstrata, despersonalizada. O bilionário contemporâneo não é mais o industrial ou o construtor, mas o cotista de fundos que diversifica ativos no Brasil e no exterior.
Marilia Tunes/Portal Grabois   

Trezentos bilionários brasileiros concentram R$ 2,01 trilhões, o equivalente a 17,1% do PIB nacional: é o que mostra a edição 2025 da lista anual de bilionários da Forbes Brasil, que acaba de ser publicada. O dado, impressionante por si só, torna-se ainda mais eloquente quando visto em perspectiva histórica.

Ascensão dos bilionários como fenômeno estrutural

Forbes, revista que nasceu para promover o sucesso do capitalismo empresarial americano em meio à expansão financeira, lançou sua primeira lista mundial de bilionários em 1987. À época, muitos a consideraram uma excentricidade supérflua, quase uma frivolidade editorial. Poucos perceberam que ali se inaugurava um novo fenômeno estrutural: a ascensão dos bilionários como tipo social e expressão do rentismo em ascensão.

Naquele ano, havia apenas três brasileiros no ranking global: Sebastião Camargo, Antônio Ermírio de Moraes e Roberto Marinho. Em 2015, o número saltou para 160. Agora, em 2025, chegamos a 300. Um crescimento vertiginoso que não pode ser lido como sinal de prosperidade, mas como sintoma de transformações mais profundas da economia mundial – e da particular regressão da economia brasileira nas últimas quatro décadas.

Riqueza aparente e vínculos frágeis com a economia nacional

À primeira vista, a lista da Forbes parece retratar um Brasil de sucesso. Eduardo Saverin, cofundador do Facebook, figura no topo com R$ 227 bilhões (nunca um brasileiro foi tão rico!). Saverin passa a imagem de um Brasil inserido no futuro, o bilionário do setor de tecnologia. Mas sua fortuna está ligada à renda gerada pela propriedade de ações de uma das big techs, na qual ele não atua desde 2005. É uma exceção, ao lado de outro caso igualmente atípico, o de Daniel de Freitas, fundador da Character.AI, vendida ao Google em 2024. Nenhum deles representa a economia nacional: ambos estão ligados a trajetórias externas, sem relação com o desenvolvimento do Brasil. 

Para incautos, a lista também parece mostrar o sucesso da indústria brasileira: 36 bilionários estão ligados ao setor. Mas 32 pertencem a um único conglomerado, a WEG. Outros são ligados à Votorantim e à CSN, sobreviventes do processo de regressão industrial que o Brasil sofreu desde os anos 1980. O que a lista sugere como força produtiva é, na prática, resíduo do processo de industrialização que se encerrou há décadas.

Lida com atenção, a lista da Forbes, longe de ser uma celebração do dinamismo brasileiro, é um retrato da sua regressão.

Rentistas moldam a nova elite bilionária

A distribuição setorial dos bilionários brasileiros é eloquente: predominam as finanças, o varejo e o agronegócio. São 35 bilionários ligados às finanças (11,6% do total), 24 ao varejo (8%) e 18 ao agronegócio (6%). Três áreas que, em conjunto, remetem a uma estrutura econômica que lembra mais a República Velha do que um dos mais bem-sucedidos casos de industrialização do século XX.

Consumo e direitos sociais: a nova fronteira do capital financeiro

Mais recentemente, surgiu uma nova cepa de bilionários ligados ao varejo – supermercados, eletromóveis, drogarias, perfumarias, vestuário. Donos de grandes redes associadas a bancos e fundos, cresceram apoiados no alto coeficiente de importações e na venda a crédito aos mais pobres. O setor se concentrou de forma acelerada; vários grupos buscaram saltar de patamar com entrada direta nas finanças e sucessivas fusões e aquisições. Não raro, essa expansão se deu fora do eixo Rio-São Paulo, em regiões dinamizadas pelo agronegócio (basta pensar na Havan e no Grupo Mateus).

A mercantilização de bens públicos também ampliou esse mapa: grandes grupos de educação, sistemas de ensino, editoras, serviços educacionais; hospitais, laboratórios e planos de saúde; e empresas privadas de segurança (vigilância patrimonial para bancos, shoppings, escolas, condomínios) passaram a dividir controle com fundos nacionais e internacionais, convertendo direitos sociais em ativos altamente rentáveis. 

Essa nova configuração econômica, comandada pela lógica rentista e centrada no setor primário e em suas exportações, alterou radicalmente as articulações setoriais da economia brasileira.  

A regressão industrial, o avanço do agronegócio e o comércio varejista se acomodaram num arranjo funcional, da perspectiva de seus interesses imediatos. O aumento dos preços e da demanda internacional por commodities assegurou a geração substancial de divisas, que, por sua vez, viabilizou a enxurrada de importações que abastece o varejo brasileiro. No lugar de uma indústria nacional forte, capaz de produzir bens de consumo e de capital, o setor industrial, em conjunto com o comércio, também se alimenta de produtos importados, sustentados pelas exportações agropecuárias.

O paralelo com a República Velha é inevitável: o consumo interno voltou a depender da exportação de produtos primários. A expansão do mercado de massas se dá em cima da importação de manufaturados, que acentua a regressão do sistema industrial nacional.

O Brasil de 2025, radiografado pela Forbes, não é o país da inovação nem da geração de riqueza, mas sim de um país capturado por uma elite rentista que concentra renda e riqueza e bloqueia qualquer horizonte de desenvolvimento. Estamos regredindo para uma economia de baixa complexidade, dependente de commodities e de importações, submetida a bilionários cosmopolitas que vivem de dividendos e aquisições. O retrato da Forbes não é o de um futuro luminoso, mas de um passado oligárquico ressuscitado, deformado e agravado pela precarização urbana e pela destruição de empregos na era da Inteligência Artificial.

Confira o ranking dos 10 maiores bilionários do Brasil em 2025, segundo a Forbes:

  1. Eduardo Saverin
    Patrimônio: R$ 227 bilhões
    Empresa: Facebook
    Setor: Tecnologia
  2. Vicky Sarfati Safra e família
    Patrimônio: R$ 120,5 bilhões
    Empresa: Banco Safra
    Setor: Finanças
  3. Jorge Paulo Lemann
    Patrimônio: R$ 88 bilhões
    Empresa: AB InBev / 3G Capital
    Setor: Bebidas / Investimentos
  4. André Santos Esteves
    Patrimônio: R$ 51 bilhões
    Empresa: BTG Pactual
    Setor: Finanças
  5. Fernando Roberto Moreira Salles
    Patrimônio: R$ 40,2 bilhões
    Empresa: Itaú Unibanco / CBMM
    Setor: Finanças / Mineração
  6. Carlos Alberto da Veiga Sicupira
    Patrimônio: R$ 39,1 bilhões
    Empresa: AB InBev / 3G Capital
    Setor: Bebidas / Investimentos
  7. Pedro Moreira Salles
    Patrimônio: R$ 38 bilhões
    Empresa: Itaú Unibanco / CBMM
    Setor: Finanças / Mineração
  8. Miguel Gellert Krigsner
    Patrimônio: R$ 34,2 bilhões
    Empresa: O Boticário
    Setor: Cosméticos
  9. Alexandre Behring da Costa
    Patrimônio: R$ 31 bilhões
    Empresa: 3G Capital
    Setor: Investimentos
  10. Jorge Neval Moll Filho
    Patrimônio: R$ 30,4 bilhões
    Empresa: Rede D’Or
    Setor: Saúde

Fonte: Forbes — Lista dos 10 maiores bilionários do Brasil em 2025

O que se vê é a predominância de setores marcados pelo rentismo e voltados ao comércio de importados e à exportação de commodities, em detrimento da produção industrial mais complexa. Muito diferente do período entre 1930 e 1980, quando o Estado e a indústria lideravam a construção de um projeto nacional de desenvolvimento. Foi a crise da dívida, nos anos 1980, que consolidou essa inflexão histórica. Dela emergiu uma nova oligarquia do dinheiro, que se fortaleceu com o neoliberalismo desde a década de 1990. Embora a financeirização fosse uma tendência global, no Brasil ela assumiu contornos mais radicais com baixo crescimento econômico, regressão do sistema industrial, juros extorsivos, concentração bancária, privatizaç ão e mercantilização dos bens públicos. De país do futuro, o Brasil virou o dos juros e da regressão social.  

O comportamento rentista se espraiou para todos os setores, convertendo empresas públicas e privadas em máquinas de geração de dividendos. E a propriedade se concentrou em fundos financeiros movidos por ganhos de curto prazo e sucessivas fusões e aquisições. O contraste com o meio século anterior é brutal: quando o investimento produtivo era a norma, a acumulação se baseava na expansão industrial e tecnológica. Hoje, como diria Schumpeter, a economia brasileira está presa a um fluxo circular de renda extraída de ativos já existentes, sem inovação e novos investimentos.

A “nova” riqueza é financeira, abstrata, despersonalizada. O bilionário contemporâneo não é mais o industrial ou o construtor, mas o cotista de fundos que diversifica ativos no Brasil e no exterior. Sua fortuna pode estar em hospitais, escolas ou cervejarias, mas sua lógica é sempre a mesma: valorização financeira de curto prazo. Jorge Paulo Lemann talvez seja o exemplo mais acabado. Nunca foi propriamente um empresário industrial, mas, desde os anos 1970, um homem das finanças, que construiu monopólios via aquisições e internacionalizou sua fortuna com a 3G Capital.

O exame da lista dos bilionários também fornece boas indicações sobre a estruturação atual da economia brasileira. 

Existe um núcleo formado pelos controladores de ativos e instituições financeiras, verdadeiros condutores da economia nacional, que dominam fluxos de crédito, a dívida pública e parte da mídia. 

Ao redor da oligarquia do dinheiro, há outro tipo de bilionário, ligado a empreendimentos de diversos setores que abriram o capital de suas empresas e as submeteram à lógica rentista: por terem lucros maiores que os investimentos, alocam parte relevante de seus recursos em fundos financeiros em busca de juros altos e oportunidades de aquisições. Estão conectados à “economia real”, mas operam de modo rentista.

No agronegócio, os polpudos incentivos estatais – tradicionais desde o regime militar – foram acompanhados, a partir dos anos 2000, pelo boom de commodities que transformou radicalmente o setor. A partir de 2010, a crescente presença de fundos financeiros, a especulação com terras e o papel do Estado na formação de grandes conglomerados levaram a enorme concentração e centralização do capital, criando super-ricos em todas as etapas da cadeia – insumos, produção, distribuição, processamento e comercialização.

Esses magnatas do campo comandam conglomerados verticalizados e podem ser divididos, grosso modo, em três tipos sociais:

(i) o “gaúcho” migrante do Sul para o Centro-Oeste nas décadas de 1970-80;

(ii) empresários de outros setores – finanças, varejo, saúde, educação, comunicação – que diversificaram seus ativos; e

(iii) famílias tradicionais, antigas proprietárias de terras. Na agroindústria, prevalecem grupos oligopolistas no processamento de proteína animal; no mercado de insumos, os fertilizantes; na distribuição, empresas capitalizadas por fundos.

Na indústria, os bilionários estão ligados à produção de bens de consumo correntes (alimentos, bebidas, cosméticos e calçados) e montagem, menos relevantes para a geração de riqueza e o desenvolvimento do país. Com a abertura comercial, rarearam os empresários de bens de capital, básicos, intermediários e duráveis. Parte expressiva dos novos bilionários industriais emergiu das privatizações dos anos FHC (aço, infraestrutura elétrica, telefonia, rodovias, ferrovias e portos). Outros ascenderam via IPOs ou venda de controle para fundos e multinacionais, transformando-se em rentistas, executivos ou gestores. 

Marilia Tunes é doutora em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp, mestre em Política Científica e Tecnológica pela mesma instituição e graduada em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais pela FACAMP, onde atualmente coordena o curso de Relações Internacionais e atua como docente. Suas áreas de pesquisa incluem desenvolvimento socioeconômico, economia brasileira, desigualdade social e padrões de consumo. 

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Humor de resistência

 

Quinho

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Sinais de mudança na Argentina

Milei: hipóteses sobre uma derrota catastrófica
Pesaram as evidências de corrupção. Mas o naufrágio eleitoral do presidente no domingo expressa sobretudo a erosão de duas crenças essenciais à ultradireita. Nem o Estado Social é descartável; nem a solidariedade tornou-se valor obsoleto
Mariano Schuster e Pablo Stefanoni/Outras Palavras  

Os resultados começaram a ser divulgados às 21h do domingo, mas os rostros dos militantes da La Libertad Avanza já estavam desanimados pelo menos desde uma hora antes. As pesquisas de boca de urna anunciavam que o partido do presidente Javier Milei estava perdendo, de maneira contundente, as eleições legislativas na província de Buenos Aires, de longe a mais populosa do país. Ao final, o peronismo obteve 47,28% dos votos e a La Libertad Avanza apenas 33,71%, com uma elevada abstenção de quase 40%.

As eleições, nas quais estavam em jogo 46 cadeiras de deputados e 23 de senadores provinciais, seriam, segundo previsões de analistas e pesquisadores eleitorais, muito apertadas. O cenário projetado pelo governo ia desde um empate até, no pior dos casos, uma derrota por 5 pontos diante doperonismo. No entanto, a apuração oficial foi deixando para trás as previsões mais favoráveis ao mileísmo: o peronismo, sob a liderança do governador Axel Kicillof (centro-esquerda), venceu os ultraliberais por 13 pontos. Venceu ainda em seis das oito seções eleitorais e ficou com a maioria dos cargos em disputa. O mileísmo, que no segundo turno de 2023 havia conquistado mais de 49% dos votos, não tinha como minimizar a derrota. 

A aposta de Kicillof

Pela primeira vez, a província de Buenos Aires convocou eleições separadas das nacionais – neste caso, as de 26 de outubro próximo – para completar seu Parlamento regional. Tratou-se de uma estratégia do governador Kicillof para posicionar sua liderança entre os peronistas com vistas às eleições presidenciais de 2027, frente à ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner e seu filho Máximo Kirchner. Se Axel foi durante anos delfim de Cristina, a partir de 2023 foi se distanciando dela, e a fratura entre ambos se tornou cada vez mais profunda. Por isso, as eleições eram uma espécie de plebiscito para o governador. E por isso também eram rejeitadas por Cristina Kirchner: a ex-mandatária pensava, por um lado, que a provincialização da eleição levaria o peronismo à derrota; mas, por outro, que, em caso de triunfo, o resultad o reforçaria Kicillof mais do que a ela. Por isso, propunha que as eleições fossem junto com as nacionais, em outubro.

Mas estas eleições – que em outro contexto poderiam ter uma leitura meramente provincial – nacionalizaram-se após a decisão de Milei de torná-las um plebiscito sobre sua figura – um grave erro, dado que é um território minado para os ultraliberais, no qual os intendentes (prefeitos) conservam muito poder territorial e o ajuste os atingiu com força. A estratégia do presidente era ganhar a província para reforçar as chances da ultradireita na decisiva eleição de meio de mandato em outubro que, segundo sua visão, deveria lhe dar uma vitória contundente a ponto de resolver quase de uma só vez os problemas políticos e econômicos.

O resultado destes dois plebiscitos sobrepostos foi claro: Kicillof venceu por muito mais do que esperava e o governo Milei perdeu sem atenuantes.

Os números são demolidores para Milei, que havia prometido, com a violência que o caracteriza, cravar o «último prego no caixão do kirchnerismo». De fato, o polêmico slogan de campanha do mileísmo foi «Kirchnerismo Nunca Mais». O presidente copiou o lema da luta pelo julgamento e castigo dos responsáveis pelos crimes da última ditadura militar, repetindo inclusive sua tipografia. E não são poucos os ultradireitistas que, nas redes sociais, “acusam” os bonaerenses das zonas mais pobres do chamado conurbano de serem «negros» que, ao votar no peronismo, parecem querer continuar «cagando em baldes» («metáfora» sobre a falta de rede de esgoto). Insultar os eleitores nunca é uma boa ideia; e fazê-lo de forma racista, menos ainda. Mas a provocação permanente e o tom violento e desqualificador – funcional ou disfuncional – são parte do DNA do mileísmo.

Também a direita de Mauricio Macri faz parte dos derrotados na eleição de 7 de setembro: o partido do ex-presidente, em um ato de surpreendente auto-humilhação política, aceitou concorrer às eleições diluído nas siglas e nas cores da La Libertad Avanza. Apesar de suas dúvidas, um debilitado Mauricio Macri acabou aceitando as imposições de Karina Milei, uma figura que ele despreza. Hoje, seu futuro é incerto.

As causas da derrota são, no entanto, econômicas. A redução da inflação se baseou em um ajuste brutal – segundo Milei, o maior da história da humanidade -, que afetou menos a «casta» política, como prometeu em campanha, do que os setores populares. Milei paralisou a obra pública – em nome de suas veleidades anarcocapitalistas -, congelou aposentadorias e outros benefícios. O plano teve alto custo em termos de atividade econômica. Embora o oficialismo se vanglorie de que o ajuste não provocou um estouro social como ocorrera no passado, e de que supostamente tirou milhões de pessoas da pobreza, o mal-estar social se expressou nas urnas. O peronismo venceu até mesmo em zonas agropecuárias, que costumam ser hostis a ele.

À economia somou-se uma cadeia de supostos atos de corrupção, tema sensível para os eleitores da La Libertad Avanza, sobretudo os menos radicalizados. Primeiro, Milei promoveu, a partir de sua conta em redes sociais, a criptomoeda Libra, que acabou despencando em poucos minutos, com perdas massivas para quem investiu nela e ganhos milionários para os personagens obscuros que a criaram, e têm vínculos comprovados com o presidente. Mais tarde, um avião privado, propriedade de um empresário próximo à Casa Rosada, com apenas dois tripulantes e uma integrante da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), introduziu no país malas suspeitas, sem passar pelos controles aduaneiros. Mais grave ainda: fentanil contaminado provocou quase cem mortos diante da inação do Ministério da Saúde. E o mais demolidor, por afetar o centro do poder: divulgaram-se estudos de um ex-funcionário e ex-amigo íntimo de Milei nos quais mencionava que Karina Milei – irmã do presidente e apelidada de «o Chefe» – recebia propina pelos contratos assinados pela Agência Nacional de Discapacidade com laboratórios farmacêuticos privados.

Este caso afetou em cheio a figura de Karina Milei, que, sem antecedentes na política, assumiu o controle do Estado. Por um lado, mostrou que o governo que se proclamou um cruzado contra a «corrupção kirchnerista» meteu-se, rapidamente, na lama do dinheiro sujo; por outro, este caso, ao contrário de Libra, no qual os prejudicados eram crypto bros estrangeiros, afetava os deficientes, em um momento em que o governo corta recursos para este setor. A oposição ficou com um ativo inestimável: a sensação de que «o governo rouba dos deficientes». Uma canção adquiriu, quase imediatamente, uma imensa popularidade: sua letra repete que «Karina é altamente propineira». A cifra que ela receberia, 3% segundo os áudios vazados, tornou-se o símbolo de seu escárnio e fonte de memes, piadas e gestos contra alguém que o presidente che gou a comparar com Moisés. 

Milei passou progressivamente a ser considerado um «homem cruel» por grande parte dos argentinos. Apesar de seu posto, nunca deixou de insultar seus críticos – sobretudo economistas e jornalistas – com termos como «brutos», «merdas humanas», «mandris» (uma referência sexual ao traseiro avermelhado desses primatas), ou os progressistas como «esquerdistas filhos da puta». Inclusive, começou a encerrar suas mensagens com a frase «Não odiamos os jornalistas o suficiente» – acusando-os de tentar desprestigiar seu governo. Também não pôde evitar envolver-se em uma discussão pública com os médicos do emblemático hospital pediátrico Garrahan e até com um ativista de autismo de 12 anos de idade. Seu exército de trolls não hesita em pedir ao mandatário que feche ou dinamite o Congresso, no qual o governo carece de maiorias, quando vota leis que, segundo a visão oficial, buscam destruir o superávit fiscal e o próprio governo.

Um leão herbívoro?

Após a derrota, o presidente assumiu — com um tom comedido, que constitui uma raridade — o que foi, em toda a regra, uma surra eleitoral. «A primeira coisa que se deve aceitar são os resultados, e os resultados não foram positivos», afirmou diante de seus seguidores, rodeado por parte de seu gabinete e do «triângulo de ferro» composto por seu assessor Santiago Caputo e sua irmã Karina Milei, formalmente secretária-geral da Presidência.

«Não há opção de repetir os erros. De frente para o futuro, vamos corrigir todos os nossos erros», afirmou. Mas, em vez de explicar quais eram e ensaiar possíveis mudanças, avançou no sentido oposto. «O rumo pelo qual fomos eleitos não será modificado, mas sim redobrado», afirmou, para depois enumerar, com sua habitual grandiloquência, cada uma de suas medidas: desde as econômicas até as culturais, sem esquecer o alinhamento internacional ao lado dos países “corretos” – que, em sua visão, são basicamente Estados Unidos e Israel. Tirando da cartola uma citação de autoridade para superar a derrota, Milei evocou Churchill e disse: «O sucesso não é definitivo, o fracasso não é fatal». Não soava como um discurso de «O Leão», como seus partidários denominam s eu líder.

Milei chegou à eleição com múltiplas pressões sobre o dólar, que o governo mantém «contido» para evitar uma nova alta da inflação, que devastaria seu principal ativo político. Mas para evitar uma disparada da cotação, o governo elevou às nuvens as taxas de juros – para absorver pesos e evitar que migrem para o dólar – e os encaixes bancários. Até economistas ortodoxos e setores do establishment duvidam hoje do plano econômico implementado pelo ministro Luis Caputo – antes ministro de Mauricio Macri, que perdeu as eleições por causa dos maus resultados precisamente na área econômica. A taxa de risco superou os 900 pontos, e é chamado pelo governo de «risco kuka», termo depreciativo proveniente da palavra «barata», utilizado para se referir ao kirchnerismo. Ou s eja, o risco estaria associado, na visão oficial, a resultados eleitorais como os de 7 de setembro, que deixam aberta a possibilidade de um futuro retorno do peronismo ao poder.

No plano político, o triângulo de ferro há tempos ameaça explodir. As gravações vazadas, que mencionam Karina Milei, geraram todo tipo de suspeitas sobre os autores da gravação clandestina. Teria sido alguém do próprio núcleo duro do governo?. Mas as eleições também contribuem para tensionar a relação entre Karina e o poderoso – e opaco – Santiago Caputo, que completa o triângulo que tem Milei no topo. Além disso, os tropeços do governo deixaram expostos, e mais fracos, dois representantes do «clã Menem», parentes do ex-presidente Carlos Menem (1989-1999): Eduardo «Lule» Menem, braço direito de Karina Milei, e Martín Menem, presidente da Câmara dos Deputados.

Embora seja apenas um «assessor», Caputo controla áreas estratégicas do governo – incluindo a inteligência – e se enfrentou com a irmã presidencial pela estratégia eleitoral. Enquanto ele propunha aliar-se com setores da oposição dialoguista, sobretudo governadores, para reforçar as possibilidades eleitorais de um oficialismo sem um partido verdadeiro por trás, ela optou por listas «puras» da La Libertad Avanza para «ir por tudo» pela mão da até então alta popularidade do presidente. Mas os candidatos escolhidos – em geral, políticos com passados questionáveis ou pouco conhecidos – resultaram até agora fatais. Primeiro na província de Corrientes, no nordeste argentino, e agora na estratégica Buenos Aires. A mobilização de violentos barrabravas do futebol, no ato de encerram ento da campanha, deixou ver que a prometida renovação política e moral mileísta podia cair rapidamente no pior das práticas da «casta», mas sem a habilidade política desta última.

O «anão soviético» versus Milei

Empoderado pelos resultados, Kicillof buscará agora reforçar seu discurso de «Estado presente» (embora em muitos dos municípios bonaerenses governados pelo peronismo o Estado deixe muito a desejar). Em síntese: mais Keynes – figura que gera surtos quase psicóticos no presidente – e menos Rothbard, o anarcocapitalista estadunidense em quem Milei diz se inspirar.

Mas, ainda que o governador tenha chamado para cantar «novas canções», até agora essas canções não apareceram e voltar à «idade de ouro» do kirchnerismo não parece uma opção. O peronismo tem sido tradicionalmente uma mistura de máquina eleitoral ao velho estilo e capacidade de criar poderosas narrativas e mística política. Em 2023, Milei colocou em crise ambas as dimensões. Mas com os novos resultados, o partido fundado por Juan Domingo Perón na década de 1940 espera voltar a ser uma opção de poder, impulsionado pelos tropeços do governo.

Com origens na classe média intelectual portenha, Kicillof incorporou-se tardiamente ao peronismo e nada indicava que pudesse liderá-lo. Muitos caudilhos territoriais o viam como muito «suave», com seu rosto infantil e estilo de líder estudantil. Mas sua reeleição em 2023 e sua vitória de 7 de setembro foram dois degraus que o catapultam como líder por direito próprio, já independente da ala de Cristina Kirchner.

«As urnas disseram a Milei que não se pode parar a obra pública, explicaram a ele que não se pode bater nos aposentados [em referência à repressão policial das marchas que reivindicam, toda quarta-feira, melhoras nas aposentadorias], que não se pode abandonar as pessoas com deficiência. As urnas gritaram que não se pode desfinanciar a educação nem a saúde, nem a ciência nem a cultura. As urnas disseram a ele [Milei] que tem que parar de insultar a democracia, o federalismo e a Constituição», disse Kicillof diante de seus seguidores. Posicionando-se claramente como o líder da oposição, dirigiu-se diretamente ao presidente: «Milei, o povo te deu uma ordem: não podes governar para os de fora, para as corporações, para os que mais têm. Escuta o povo. Temos que imperiosamente nos reunir, como autoridade da província onde habitam 40% dos argentinos e argentinas. Espero a ligação, tem a coragem e a valentia de ligar, trabalhar e entrarmos em acordo».

A ex-presidente Cristina Kirchner saiu à varanda do apartamento onde cumpre uma sentença de seis anos de prisão domiciliar – que inclui sua inabilitação perpétua para exercer cargos públicos – e celebrou com centenas de manifestantes que a aclamavam da rua. Para Cristina, a vitória tem um sabor agridoce: por um lado, o triunfo peronista melhora sua situação pessoal e potencializa sua denúncia de «proscrição», mas por outro, reforça Kicillof, que se distanciou dela.

Em uma mensagem publicada na rede social X, à qual recorre usualmente para se dirigir diretamente ao atual presidente argentino, Cristina escreveu: «Viu, Milei?… Banalizar e vandalizar o ‘Nunca Mais’, que representa o período mais obscuro e trágico da história argentina, não é de graça. Rir da morte e da dor de seus oponentes, tampouco. Mas apontar com o dedo e estigmatizar os deficientes, enquanto sua irmã cobra 3% de propina nos medicamentos, é letal. E melhor, nem te conto como está o resto (dos que ainda têm trampo)… Endividados por comida, aluguéis, condomínios ou medicamentos, e ainda por cima com os cartões estourados… Sai da bolha, irmão… que tá ficando pesado. Saudações cordiais desde San José 1111». Esse endereço, na zona sul da cidade de Buenos Aires, é hoje um local de pereg rinação para os kirchneristas.

Kicillof, por sua vez, já lançou seu próprio espaço dentro do peronismo: o Movimento Direito ao Futuro, com o qual o governador – a quem Milei chama de «anão soviético» – buscará unir o hoje fragmentado peronismo atrás de sua figura. Agora, Kicillof deverá ratificar sua vitória nas eleições nacionais de outubro, nas quais Milei sonha em se recuperar.

Congresso, a nova trincheira

Junto ao devir econômico (Milei esperava que uma vitória eleitoral emitisse uma mensagem à política e aos mercados) soma-se uma renovada atividade parlamentar. A rejeição ao veto presidencial da Lei de Emergência em Deficiência, decidida por mais de dois terços do Senado, e o avanço de uma iniciativa para limitar os decretos presidenciais, dos quais Milei faz uso e abuso, são apenas uma mostra de que o Congresso está longe de sua submissão inicial. Naqueles primeiros meses, atordoada pela popularidade de Milei, parte da oposição apoiou com seu voto a Lei de Bases, um megaprojeto legislativo que incluía uma radical desregulamentação do Estado. O governador da província de Santa Fe, Maximiliano Pullaro, da ala de centro-direita da União Cívica Radical, resumiu: «A gente não quer mais gritos, quer fatos». O Congresso, dominado pela oposição, possivelmente também não suporte mais os insultos cotidianos do presidente e de seus lacaios.

Ninguém sabe por que rumo Milei seguirá, mas esperam-se mudanças em seu gabinete. Predominarão os falcões ou as pombas, como o chefe de gabinete Guillermo Francos? Haverá alguma margem para que Karina Milei ceda algo de seu poder, dado seu vínculo psicológico – quase patológico – com seu irmão? (em certas ocasiões Milei rompe a chorar quando menciona seu nome). Que reviravoltas poderia dar na área econômica? Até onde chegará o cerco parlamentar? E finalmente: que probabilidades tem o governo de reverter, nas eleições nacionais de outubro, este resultado?

Nas bases mileístas reinava o estupor e abundavam as reclamações. «Aqui continuaremos apoiando ATÉ O FIM. Mas organize JÁ o time. Organize o time e VENCEREMOS», postou na rede X o Gordo Dan, o líder do exército digital mileísta. Muitos reclamavam voltar às fontes, reincorporar os ultradireitistas desgarrados e reduzir o poder de Karina Milei. Em síntese, uma fantasia de voltar ao momento zero, no qual o mileísmo era todo esperança, frente ao momento atual, no qual deve enfrentar a política real e o fim da lua de mel com a sociedade.

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Leia também: Neofascista "antissistema" só pode ser piada https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/minha-opiniao_44.html 

Minha opinião

Luiz Fux e as duas faces da moeda*
Luciano Siqueira 
instagram.com/lucianosiqueira65 

Sabe-se lá qual motivação mais recôndita e inconfessável que terá levado o ministro Luiz Fux a proferir, por longas e maçantes 11 horas, esdrúxulo voto pela absolvição de Jair Bolsonaro e a maioria dos seus cúmplices do "núcleo crucial" da conjura golpista.

A extrema direita, ainda que na defensiva, comemora e se utiliza de várias passagens da peroração de Fux, fragmentadas, em vídeos, para reforçar a defesa midiática do ex-presidente.

Mas tem o outro lado da moeda. 

Com os votos ainda a serem proferidos pelos ministros Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, provavelmente na mesma linha de Alexandre de Moraes e Flávio Dino, confirmando a condenação de Bolsonaro e dos seus asseclas, o contraste com Fux faz cair por terra a acusação de que existiria uma conspirata previamente direcionada no âmbito da primeira turma do STF. 

Na crítica ao posicionamento do ministro Fux salienta-se a contradição com seus próprios votos proferidos recentemente — tanto favorável a que o processo tramitasse no âmbito da Suprema Corte, que ele agora rejeita; como na condenação dos envolvidos nos atos terroristas de 8 de janeiro, quando apoiou e defendeu as pesadas penas adotadas.

Para além disso, vale anotar a crueza da luta pela democracia nos dias que correm.

Não se trata de uma peleja circunstancial, mas de elemento essencial no projeto alternativo de desenvolvimento do país, onde pontifica em íntima e indissociável articulação com a defesa da soberania nacional e a retomada de atividades econômicas estratégias, em sintonia com os direitos fundamentais dos trabalhadores e da maioria da população. 

Um dos pilares desse projeto nacional alternativo há de ser a superação do atual Estado de Direito democrático vigente, sob muitos aspectos desidratado em relação ao que se construiu na Assembleia Nacional Constituinte, tanto por sucessivas PECs, como pela corrosão persistente via legislação infraconstitucional.

É sobre esse Estado fragilizado, e sob muitos aspectos disfuncional, que Luiz Fux tripudia.

Condenar os golpistas de agora tem, assim, valor estratégico. E há de repercutir amplamente em favor da formação de uma consciência social mais avançada.

*Texto da minha coluna desta quinta-feira no portal Vermelho www.vermelho.org.br   

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Leia também: Convergência necessária e possível https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/minha-opiniao_15.html